A tattoo sai do gueto, ganha status e até cai no samba
Embrenhar-se por uma “convenção internacional de tatuagem” sem ter o crachá imprescindível de uma mísera estampa, nem mesmo uma discreta salamandra no pescoço, ou, que seja, uma rosa dos ventos no tornozelo, é como ser vegano numa churrascaria de rodízio, ou, numa analogia às avessas, sentir-se como aquele repórter gonzo Hunter Thompson, que foi cobrir um meeting do FBI americano de repressão às drogas cheio de maconha e anfetaminas na cabeça. Você está perigosamente fora de sintonia.
Desde a chegada à convenção (espanhóis, argentinos, norte-americanos, franceses, que, ali instalados, testemunham que ela é de fato internacional), no fluxo constante e robusto de uma maré humana que serpenteia até a concorrida entrada do Pavilhão Azul do Expo Center Norte, você experimenta certa angústia do estranhamento, que, no entanto, logo se dissipará na percepção de que a tribo ajaezada da Tattoo Week não é muito diferente, em aberrações e extravagâncias, da fauna que você habitualmente vê numa Fashion Week. Comparada com o mundinho da moda, a cena tattoo pode até ser, salvo um ou outro momento de freak show, como o propiciado por aqueles que tatuam a parte branca do globo ocular, surpreendentemente careta.
“Conquistamos o status de uma forma de expressão artística, como o grafitti e a street art”, diz Enio Conte, o criador de uma Tattoo Week que, de week só tem metade, na verdade vai de sexta a domingo. Cinco anos atrás, Enio, com três décadas de estampas epidérmicas no currículo profissional, lançou o evento num diminuto pavilhão no bairro do Ipiranga, e nesta edição de 2015 saboreava a expectativa de 50 mil visitantes no mamútico Pavilhão Azul do maior centro de convenções de São Paulo.

Mais importante que a contabilidade numérica, para ele, é perceber o progressivo prestígio social que a tatuagem veio alcançando muito além do circuito marginal dos presidiários, dos rappers, dos roqueiros, dos astros dos gramados e dos chefs de cozinha. “Por isso passamos a chamar a convenção de Tattoo Week, como as Fashion Weeks”, diz Enio. “A atmosfera é a mesma, a galera é a mesma.”
Bira, é Ubiratan Amorim, do Ink 33, usufrui, ao lado de seus parceiros, o casal Felipe Xavier e Sabrina Rodriguez, dos benefícios desse upgrade. O estúdio da trinca fica na Oscar Freire, a artéria-símbolo do luxo em São Paulo, e não por acaso a clientela – sujeita a entrar numa fila de espera que dura no mínimo um par de semanas – inclui médicos, advogados, publicitários e colunáveis, cuja ilibada reputação não corre o risco de ser comprometida por um mero detalhe decorativo a lhe enfeitar a pele. A classe A tomou gosto pela coisa, atesta Bira; decididamente, a tatuagem, linguagem ancestral de marujos saudosos de casa e de mafiosos trancafiados na cadeia, escalou a escada social.
Aos 20 anos, mas já com oito troféus de 1º lugar num currículo de assustadora precocidade, Bira é o Caravaggio das agulhas, no cultivo de um realismo detalhista e caprichado que vem embasado numa sólida formação artística, aluno que foi, na sua Bahia natal, de mestres dos pincéis e das tintas, como seu conterrâneo Leo Costa, de Bom Jesus da Lapa, e André Oliveira, em Salvador. “Trabalhei seis meses no McDonald’s para comprar o equipamento, depois virei eletricista para comprar as tintas importadas”, conta Bira. A tecnologia sofisticada e a mão de ouro do artista fazem um de seus desenhos realistas custar alguma coisa a partir de 1,8 mil reais.

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Duzão oferece as duas bochechas ao mestre Mauro e os artefatos de um dolorido culto
Olha lá, de repente, à frente de uma plateia extasiada, Bira, com o indefectível boné carmim do Chicago Bulls na cabeça, pronto para riscar a pele de Marcão, ex-Charlie Brown, hoje guitarrista do Bula. O tatuador tem um sistema: ele costuma oferecer ao futuro tatuado uma pequena psicoterapia prévia, quer saber se ele está de fato decidido ao sacrifício (tatuagem dói! – esta é uma verdade que ninguém do business desmente), se aquela imagem é realmente a que melhor se adapta ao seu tom de pele e ao lugar escolhido. Em geral, Bira simula em Photoshop a tatuagem que virá. Prefere ter a conversa inicial e só depois agendar a sessão de tortura, quer dizer, de pintura.

Com tudo isso, esvazia-se da arte do tattoo o antigo estigma da transgressão e dissipa-se o carma do preconceito. Sinal dos tempos, ao mencionar aquela que é a fiel e ilustrada tribo dos craques de futebol, um razoável número de artesãos do estêncil menciona o mais recente gol de placa da categoria. “Você viu que até o Messi aderiu?” – festejam em coro. “Cobriu um dos braços e vai cobrir uma das pernas.”
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